Da sucção à primeira palavra
De certeza que se lembram de qual foi a primeira palavra do vosso(a) filho(a) e do turbilhão de sentimentos que a acompanharam: emoção... alegria... amor... orgulho... Ouvir os nossos filhos dizerem a sua primeira palavra é algo marcante que enche o coração e que nos faz crescer como mães e pais, abrindo-nos a porta a um novo mundo de interação e descoberta que nos acompanhará para o resto da vida: o mundo da linguagem!
Mas algo que surge, aparentemente, assim tão espontânea e inesperadamente será que se desenvolve também assim? De um momento para o outro? Ou será que é algo que se inicia bem "lá" atrás e que vai "marinando" em segundo plano até ao grande momento? De onde vem? Do que depende? O que o pode alterar ou por outro lado facilitar?
A maior parte das crianças demora cerca de um ano ou mais até conseguir pronunciar as suas primeiras palavras e como aprendem por imitação, têm nos pais os maiores professores nesta tarefa. Reconhecer que os sons que desde cedo aprenderam a imitar e repetir, fazendo longas brincadeiras (balbuciar, palrar), provocam reações no meio envolvente é algo fantástico e que estimula a criança a continuar esta troca em que, de acordo com a reação que recebe às suas produções, percebe que quando quer determinada "coisa" tem que fazer determinado som.
A fala é a forma de comunicação mais acessível para interagir com o mundo que nos rodeia. No entanto, é um processo complexo que não é imediato, necessitando de equilíbrio muscular e estrutural de todo o nosso sistema estomatognático para ocorrer sem alteração. Assim, é um processo que requer treino e um bom desenvolvimento de várias estruturas (boca, lábios, dentes, bochechas, palato [céu da boca], língua, mandíbula, maxila e músculos da face) que são comuns a várias funções: sucção, deglutição, mastigação e fala.
A primeira função inicia e desenvolve-se de forma reflexa ainda dentro da barriga da mãe quando o bebé começa a desenvolver a sucção (por volta do 5º mês de vida intra-uterina, sendo observado a partir da 29ª semana e estando completamente desenvolvida por volta da 32ª semana). Após o nascimento, é através da sucção que a criança se alimenta (quer seja no peito materno ou por tetina artificial) e a mesma permite o crescimento da face, do maxilar inferior e adequa o movimento, o tónus e a força da língua, dos lábios, das bochechas e do palato (céu da boca). Prepara também os músculos da face e as estruturas da cavidade oral para quando chegar a altura do bebé começar a comer as primeiras refeições com a colher, a beber líquidos pelo copo e a mastigar alimentos mais duros garantindo assim uma adequada transição alimentar.
A sucção representa então um papel importante no desenvolvimento orofacial, que irá por sua vez refletir-se na produção de fala uma vez que os músculos e estruturas que a criança usa para sugar serão os mesmos que usará para articular os sons da fala.
No recém-nascido a alimentação é feita através da ingestão de leite, obtendo-o através da sucção nutritiva no peito da mãe ou por biberão. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda o aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses e após esse período até aos dois anos, ou mais, em conjunto com alimentos complementares como a forma óptima de nutrição do recém-nascido. As vantagens do leite materno incluem não só o seu conteúdo nutricional, como também melhor capacidade de absorção interna dos seus nutrientes, prevenção de alergias, problemas respiratórios e outras doenças, desenvolvimento psicológico mais favorável, melhores defesas imunológicas, exercendo igualmente um papel importante na redução da mortalidade infantil e nos aspectos afetivos entre a mãe e o bebé.
A prática do aleitamento materno no peito promove não só melhor involução uterina (útero voltar ao tamanho normal) no período pós-parto como diminui a incidência do cancro mamário e uterino, e revela-se de grande valor prático na sua utilização, não resultando em gastos financeiros acrescidos para a família.
Para além dos benefícios acima descritos, a amamentação através do exercício muscular assegura a qualidade do crescimento e desenvolvimento craniofacial, quer seja nos aspectos ósseos como também musculares e funcionais. O bebé quando amamentado executa cerca de 2000 a 3500 movimentos de mandibula em 24 horas, enquanto quando a alimentação é feita através de tetina esses movimentos são de apenas cerca de 1500 a 2000.
No nascimento, a mandibula do bebé é pequena e apresenta uma posição um pouco recuada em relação à maxila e a sucção no peito da mãe promovem o desenvolvimento adequado da mesma. Para que o bebé consiga retirar o leite do peito da mãe tem que criar dentro da cavidade oral pressão negativa suficiente que provoque a progressão do leite dos ductos mamários existentes no mamilo para a sua boca. Para que tal aconteça, o bebé pressiona o mamilo contra o palato e a mandibula movimenta-se dorsalmente para a frente e para trás e de cima para baixo. A repetição continuada destes movimentos da mandibula, ao longo da mamada, várias vezes por dia, promovem não só uma posição adequada para a erupção dos dentes decíduos (dentes de leite), prevenindo assim futuras alterações das arcadas dentárias, mas também ativam músculos que no futuro irão participar activamente na mastigação. Desta forma o crescimento adequado da mandíbula irá permitir que a língua tenha maior amplitude de movimentos, sendo estes necessários para uma mastigação correta dos alimentos no futuro. Além disso, promove também uma relação adequada entre as estruturas duras e moles do aparelho estomatognático, permitindo não só a tonicidade e postura correta da língua, como também um adequado vedamento dos lábios, propiciando o estabelecimento da respiração nasal.
Contudo o aleitamento materno no peito da mãe nem sempre é possível. Isto pode ocorrer por várias razões, tais como: alterações do mamilo/mama da mãe, produção insuficiente de leite, exigências da vida profissional das mães que as levam a estar ausentes durante as horas de alimentação dos filhos e/ou até mesmo a decisão da mãe de não amamentar. Quando isto ocorre, a criança começa desde cedo a usar o biberão o que poderá promover futuramente o aparecimento de alterações ao nível do sistema estomatognático e consequentemente, como vimos acima, alterações quer ao nível da sucção, deglutição, respiração, mastigação e fala uma vez que estas se relacionam e dependem intimamente umas das outras.
Da mesma forma uma criança que utilize de forma frequente a chupeta ou tenha o hábito de sucção digital (chuchar no dedo), principalmente após os 3 anos, tem maior probabilidade de vir a ter alterações nas estruturas orofaciais que poderão conduzir ao aparecimento de alterações na fala. Isto acontece porque o uso prolongado de chupeta ou a presença de sucção digital conduz a alterações na postura dos lábios e da língua, prejudica o tónus dos músculos orofaciais, induz a ocorrência de padrões de movimentos incorrectos durante a deglutição e/ou mastigação, alterando as arcadas dentárias e promovendo a respiração oral e consequentemente prejudicando a emissão correta dos sons da fala e, claro, a comunicação.
A relação entre forma de aleitamento e hábitos de sucção não nutritivos tem sido descrita por vários autores sendo que os mesmos descrevem que os hábitos orais nocivos se instalam com maior frequência em crianças que não tiveram amamentação natural, uma vez que o impulso neuronal para a sucção está presente desde a vida intra-uterina e é normal na criança, garantido a sua sobrevivência. O aleitamento natural, para além de alimentar o bebé, também satisfaz a sucção, devido à acção dos músculos exercidos durante a mamada. Quando a criança é alimentada através do biberão, o fluxo de leite é maior que na amamentação e portanto a criança fica saciada em menos tempo e com menos esforço. O prazer emocional em relação à sucção não é atingido, e por isso a criança procura substitutos como: o dedo, a chupeta e/ou outros objectos para satisfazer o seu impulso para a sucção.
As alterações provocadas no sistema estomatognático pelos hábitos orais nocivos dependem da frequência, intensidade e duração do hábito. Desta forma, todo o hábito que se prolongar após os três anos ou tiver alta frequência poderá provocar mais alterações ao nível das estruturas quer anatómica como funcionalmente.
Sabendo que a sucção, deglutição, a mastigação e a fala se relacionam fortemente e que qualquer alteração numa destas funções pode afetar uma das outras, é importante que os pais estejam atentos para prevenir eventuais perturbações no desenvolvimento do seu filho. Assim, para além de estar alerta para possíveis problemas quer ao nível das estruturas como ao nível do seu funcionamento e procurar ajuda especializada em caso de alteração, ou dúvida, existem algumas recomendações que podem ser úteis:
1. No caso de ser necessário o uso de tetina/chupeta, a mesma deverá ter um formato que se assemelhe o mais possível ao mamilo da mãe (de forma a interferir o menos possível no desenvolvimento anatómico da boca do bebé), devendo por isso ser do tipo ortodôntico e de tamanho igualmente semelhante ao mamilo da mãe (para estimular de forma adequada o posicionamento das estruturas e o crescimento mandibular o mais próximo possível ao natural);
2. Nas crianças que usam o biberão utilizar biberões de preferência de fluxo com pouca intensidade ou furo pequeno, para que o bebé tenha que fazer um esforço semelhante ao que faria no peito da mãe para extrair o leite;
3. Evitar que hábitos orais se prolonguem no tempo (principalmente após os 3 anos) e que sejam frequentes ao longo do dia (tentar perceber se essa necessidade da criança pode ser substituída por outra que não seja prejudicial e que seja adequada ao seu desenvolvimento; converse com a criança, explique-lhe que pode escolher outra coisa que poderá utilizar sempre que sinta a necessidade, por exemplo um brinquedo favorito e especial).
Dra Joana Fortunato [Terapeuta da Fala | Conselheira em Aleitamento Materno » Centro de Desenvolvimento Acentuar | Hospital do Espírito Santo de Évora]
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